UNIDADE I –
CONHECENDO UM POUCO DA ANTROPOLOGIA
Resumo da Unidade I – Essa aula aborda algumas
ideias que contribuíram de forma direta para o desenvolvimento da Antropologia
da Educação como campo de conhecimento, bem como analisa um pouco do histórico
desse campo. Nosso objetivo é proporcionar a você, estimado aluno iniciante nos
estudos antropológicos, uma visão geral sobre essa temática.
Aula I.II –
Um pouco do histórico da antropologia
Resumo da Aula I.II – Nessa aula, vamos estudar o
como a antropologia se desenvolveu ao longo do tempo, com ênfase nos estudiosos
mais importantes para a área.
Os primeiros passos a antropologia foram dados
na segunda metade o século XIX, na Europa. A antropologia surgiu ligada a outra
ciência humana, a Sociologia. Um dos grandes representantes do início da
antropologia foi Émile Durkheim, pensador que criou o chamado “fato
social” para explicar o objeto de estudo das ciências humanas (como a
sociologia e a antropologia). O fato social age como uma norma coletiva com independência e poder de coerção sobre o
indivíduo, ou seja, uma forma de coerção sobre os indivíduos que é vista como
uma coisa exterior a eles, sendo estabelecida em toda a sociedade. Nesse período o mundo passava por uma série
de mudanças sociais, políticas e econômicas, geradas pela Revolução Industrial
(Figura 1).
Essa Revolução formou o plano de fundo que deu
origem a sociedade capitalista industrial. Em seu
sentido mais pragmático, a Revolução Industrial significou a substituição da
ferramenta pela máquina, e contribuiu para consolidar o capitalismo como modo
de produção dominante. Esse momento revolucionário, de passagem da energia
humana para motriz, é o ponto culminante de uma evolução tecnológica, social, e
econômica, que vinha se processando na Europa desde a Baixa Idade Média.
Na Baixa Idade Média, a forma de produção de mercadorias mais
característico do período foi o artesanato, o qual predominou durante o
renascimento urbano e comercial. O artesanato era caracterizado por uma
produção de caráter familiar, na qual o artesão era o proprietário da oficina e
das ferramentas e trabalhava com a família em sua própria casa, realizando
todas as etapas da produção, desde o preparo da matéria-prima, até o acabamento
final; ou seja não havia divisão do trabalho ou especialização. Em algumas
situações o artesão tinha junto a si um ajudante, porém não assalariado, pois
realizava o mesmo trabalho pagando uma "taxa" pelo utilização das
ferramentas (RECCO, 2010). O conjunto desses trabalhadores eram
as chamadas Guildas.
É importante lembrarmos que nesse período a produção artesanal estava
sob controle das corporações de ofício, assim como o comércio também
encontrava-se sob controle de associações, limitando o desenvolvimento da
produção. Assim, formaram-se as primeiras guildas: corporações medievais de ofício,
compostas por artesãos de um mesmo ramo, com pessoas que desenvolviam a mesma
atividade e procuravam garantir os interesses de classe e regulamentar a
profissão. Elas foram criadas a partir da crença de que as escolas
profissionalizantes existentes não podiam ensinar a cadência e o ritmo dos
ateliês nos quais os aprendizes iriam trabalhar no futuro.
Segundo Hauser (1972), a sua educação baseava-se não em escolas formais,
mas em oficinas, nas quais a instrução era prática e não livresca. Depois de haverem
adquirido rudimentos de escrita e aritmética, vão ainda crianças, para junto de
um mestre e passam muitos anos com ele. As corporações de ofício foram
suprimidas pelo ideal da Revolução Francesa que consagrou a liberdade
individual. O novo regime Francês, o qual pregava a liberdade para o exercício
de profissão, arte ou ofícios, determinou o fim das corporações de ofício,
através do Edito de Turgot de 1776. Vale ressaltar que o modelo de
profissionalização das guildas foi dominante até o século XVIII, apesar de
existirem as Academias de arte e de ofícios, paralelamente a estas corporações.
Além da formação do profissional, durante convivência com os membros das
corporações era possível partilhar o ânimo pela nova profissão, com vínculos
múltiplos entre os indivíduos que as formavam, dando unidade e possibilitando a
construção de uma identidade profissional da corporação.
A manufatura, a qual predominou ao longo da Idade Moderna, resultando da
ampliação do mercado consumidor com o desenvolvimento do comércio monetário.
Nesse momento, já ocorre um aumento na produtividade do trabalho, devido a
divisão social da produção, onde cada trabalhador realizava uma etapa na
confecção de um produto. A ampliação do mercado consumidor relaciona-se
diretamente ao alargamento do comércio, tanto em direção ao oriente como em
direção à América, permanecendo o lucro nas mãos dos grandes mercadores. Outra
característica desse período foi a interferência do capitalista no processo
produtivo, passando a comprar a matéria prima e a determinar o ritmo de
produção, uma vez que controlava os principais mercados consumidores.
A partir da máquina, o processo produtivo tornou-se fragmentado. O
trabalhador, dominado pela racionalidade técnica do sistema capitalista
alienante, não conhecia mais o processo produtivo, pois os seus saberes
baseavam-se somente no setor da linha de montagem em que estava inserido.
Considerando a Revolução Industrial como um processo contínuo, podemos falar
que existiram períodos, os quais podem ser separados para caráter didático: num
primeiro momento (energia a vapor no século XVIII), num segundo momento
(energia elétrica no século XIX) e num terceiro e quarto momentos,
representados respectivamente pela energia nuclear e pelo avanço da
informática, da robótica e do setor de comunicações ao longo dos séculos XX e
XXI, porém aspectos ainda discutíveis (RECCO,
2010).
Nesse momento, é preciso esclarecer a conexão
entre o surgimento do capitalismo e o nascimento da antropologia. Como o
sistema capitalista não se resumia apenas aos limites da Europa, ele buscava
novos mercados para a venda de mercadorias. Isso gerou o mercantilismo e as
grandes navegações.
Desse modo, o aparecimento da antropologia como ciência aconteceu a
partir dos grandes descobrimentos realizados por navegadores e viajantes
europeus. Eles tinham a curiosidade de conhecer povos exóticos, de saber como
viviam e pensavam homens de culturas tão distantes da europeia, de descobrir
que aspecto físico e que costumes tinham, levou à classificação e ao estudo dos
dados recolhidos no lugar de origem (in
loco) por exploradores, comerciantes e missionários chegados àquelas terras
longínquas. O objetivo é conhecer o ser humano nas mais diversas culturas
(figura 2).
Os primeiros antropólogos tinham como característica comum a distância
do objeto de seu estudo, o qual consistia sempre em homens pertencentes a
culturas distintas da europeia e dela geograficamente afastadas. A moderna
antropologia, no entanto, estende sua pesquisa às sociedades industriais e até
mesmo às grandes concentrações urbanas. Mas seus instrumentos de trabalho se
foram aos poucos delineando justamente no estudo das sociedades
"primitivas", mais simples e com um processo de mudança menos
vertiginoso que o das sociedades modernas (SANTOS, 2005).
Aqui, cabe uma relação importante com a nossa área
específica, as Ciências Naturais. O início da antropologia foi fortemente
influenciado pelas teorias evolucionistas de Pierre Lamarck (1744-1829) e de
Charles Darwin (1809-1882). Em ambas as teorias o ambiente desempenha um papel
preponderante no processo de evolução das espécies de organismos vivos. Lamarck
(figura 3) propôs que uma transformação no ambiente provocaria a
necessidade das espécies mudarem.
Baseado nessa ideia ele formulou
duas leis: a primeira ficou conhecida como Lei do Uso e Desuso, a qual abordava as novas necessidades e os novos
hábitos do ser vivo com a mudança no meio ambiente. Com esses novos hábitos, o
ser vivo passava o usar mais um determinado órgão, que se desenvolvia mais que
outros. Nesse último caso, os membros pouco usados se atrofiavam. Já a segunda
Lei prega que essas novas características passariam para as novas gerações, o
que ficou conhecido como a Lei da Herança dos Caracteres
Adquiridos. Dito de outra forma: se uma característica fosse adquirida por um
individuo, quando esse reproduzir, irá passar para a outra geração essa
característica.
Já para Darwin (figura 4), a evolução era
consequência da Seleção Natural, ou seja, o ajustamento de uma
característica reminiscente ao ambiente. A prevalência da característica
torna-se favorável ao individuo, à medida que, hereditariamente, são
transmitidas para as gerações seguintes. Assim, a transmissão sucessiva da
característica benéfica acaba se consolidando na população, passando a ser um
caráter comum, transmitido de geração em geração. Também por seleção natural,
as características desfavoráveis de um organismo não se perpetuam
reprodutivamente, ficando cada vez menos frequente na população.
Veja, abaixo um quadro que resume as principais ideias do pensamento
desses autores evolucionistas:
Figura 3: Lamarck
Figura 4: Darwin
Quadro que resume as diferenças entre o pensamento de
Lamarck e Darwin.
A antropologia foi bastante influenciada por
essas ideias evolucionistas. Por exemplo, o antropólogo estadunidense Henry
Lewis Morgan (1818-1881) propôs um modelo de evolução cultural da humanidade.
Para ele, as sociedades possuem três estágios: selvageria, barbárie, e
civilização (sendo esse último o mais “evoluído”). No mesmo período, o inglês
James Frazer (1854-1941) elaborava um modelo evolutivo do pensamento humano, o
qual era composto em três fases: magia, religião e ciência (sendo a ciência a
forma mais complexa de pensamento) (SANTOS, 2005).
Quando analisamos mais detalhadamente os
pensamentos acima citados, notamos que a essa visão antropológica evolucionista
da sociedade surge a partir da visão que os próprios europeus e estadunidenses
de sua própria sociedade, a qual era encarada como “civilizada” e “complexa”
por possuir indústrias e ciência. Por outro lado, as sociedades que
apresentavam uma outra cultura eram vistas como “inferiores”, “primitivas” ou
“atrasadas”.
Atualmente, acreditamos que as culturas que
apresentam visões de misticismo (magia) ou de ciência não têm entre si uma
relação de evolução cultural. Na verdade, elas apresentam explicações
diferentes para o mundo que dependem dos contextos sociais e culturais dessas
sociedades.
Uma consequência do pensamento do
evolucionismo cultural é a ideia do determinismo
geográfico, ou seja, a concepção de que o ser humano é um produto do meio
ambiente. Por exemplo, vejamos o caso do Brasil. Durante muito tempo, os
habitantes do Sul-Sudeste eram vistos como os mais “evoluídos”, enquanto os
nordestinos eram tachados de “preguiçosos” e “atrasados”.
Qual é a explicação para isso? Na visão do
evolucionismo cultural, o fato de que no Sul-Sudeste ter condições geográficas
diferentes do nordeste, fez com que os habitantes sulistas sejam mais
“desenvolvidos”. Já sabemos que isso não é verdade. Uma explicação mais
plausível é o fato de que no Sul-Sudeste é que se encontra grande parte dos
recursos financeiros e estruturais do país, inclusive à custa do restante do
Brasil, o que acaba gerando uma segregação social em nossa pátria.
Cabe denotar que essa ideia de determinismo
geográfico e biológico serviu também para justificar uma suposta superioridade
racial como, por exemplo, a raça “pura dos arianos” durante o período de Hitler
na Alemanha nazista.
Para finalizar nossa aula, vejamos abaixo, um
trecho a título de exemplo de descrição antropológica, a qual é muito famosa
entre nós brasileiros: é a carta escrita por Pero Vaz de Caminha ao Rei de
Portugal, quando Caminha desembarcou nas terras brasileiras pela primeira vez.
Leia com atenção, e reflita sobre esse encontro, o “choque de culturas” entre
os nativos brasileiros e os portugueses.
A Carta
de Pero Vaz de Caminha
Senhor,
Posto que o Capitão-mor desta Vossa frota, e assim
os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento desta Vossa
terra nova, que se agora nesta navegação achou, não deixarei de também dar
disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que — para
o bem contar e falar — o saiba pior que todos fazer!
Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa
vontade, a qual bem certo creia que, para aformosentar nem afear, aqui não há de
pôr mais do que aquilo que vi e me pareceu.
[...] E o Capitão mandou em terra a Nicolau Coelho
para ver aquele rio. E tanto que ele começou a ir-se para lá, acudiram pela
praia homens aos dois e aos três, de maneira que, quando o batel chegou à boca
do rio, já lá estavam dezoito ou vinte.
Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse
suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em
direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E
eles os depuseram. Mas não pôde deles haver fala nem entendimento que
aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente arremessou-lhe um barrete
vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E
um deles lhe arremessou um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma
copazinha de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. E outro lhe deu um
ramal grande de continhas brancas, miúdas que querem parecer de aljôfar, as
quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza. E com isto se volveu às
naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar.
[...] A feição deles é serem pardos, um tanto
avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem
cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixa de encobrir suas
vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência. Ambos
traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de
comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na
ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que
lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a modo de roque de xadrez. E
trazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes põe estorvo no
falar, nem no comer e beber.
Os cabelos deles são corredios. E andavam
tosquiados, de tosquia alta antes do que sobre-pente, de boa grandeza, rapados
todavia por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a
fonte, na parte detrás, uma espécie de cabeleira, de penas de ave amarela, que
seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o
toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena por pena, com uma
confeição branda como, de maneira tal que a cabeleira era mui redonda e mui
basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.
O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em
uma cadeira, aos pés uma alcatifa por estrado; e bem vestido, com um colar de
ouro, mui grande, ao pescoço. E Sancho de Tovar, e Simão de Miranda, e Nicolau
Coelho, e Aires Corrêa, e nós outros que aqui na nau com ele íamos, sentados no
chão, nessa alcatifa.
Acenderam-se tochas. E eles entraram. Mas nem
sinal de cortesia fizeram, nem de falar ao Capitão; nem a alguém. Todavia um
deles fitou o colar do Capitão, e começou a fazer acenos com a mão em direção à
terra, e depois para o colar, como se quisesse dizer-nos que havia ouro na
terra. E também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a
terra e novamente para o castiçal, como se lá também houvesse prata!
Mostraram-lhes um papagaio pardo que o
Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como se
os houvesse ali.
Mostraram-lhes um carneiro; não fizeram caso dele.
Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo
dela, e não lhe queriam pôr a mão. Depois lhe pegaram, mas como espantados.
Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido,
confeitos, fartéis, mel, figos passados. Não quiseram comer daquilo quase nada;
e se provavam alguma coisa, logo a lançavam fora.
Trouxeram-lhes vinho em uma taça; mal lhe puseram a
boca; não gostaram dele nada, nem quiseram mais.
Trouxeram-lhes água em uma albarrada, provaram cada
um o seu bochecho, mas não beberam; apenas lavaram as bocas e lançaram-na fora.
Viu um deles umas contas de rosário, brancas; fez
sinal que lhas dessem, e folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço; e
depois tirou-as e meteu-as em volta do braço, e acenava para a terra e
novamente para as contas e para o colar do Capitão, como se dariam ouro por
aquilo.
Isto tomávamos nós nesse sentido, por assim o
desejarmos! Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto
não queríamos nós entender, por que lho não havíamos de dar! E depois tornou as
contas a quem lhas dera. E então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir
sem procurarem maneiras de encobrir suas vergonhas, as quais não eram fanadas;
e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas.
O Capitão mandou pôr por baixo da cabeça de cada um
seu coxim; e o da cabeleira esforçava-se por não a estragar. E deitaram um
manto por cima deles; e consentindo, aconchegaram-se e adormeceram.
Referências
HAUSER, A. História
Social da Literatura e da Arte (Tomo I). 2. ed. São Paulo: Mestre
Jou, 1972.
RECCO, C. B. Revolução Industrial. Disponível em: <http://www.historianet.com.br/home/>.
Acesso em: 13 jul. 2011.
SANTOS, R. J. Antropologia
Para Quem Não Vai Ser Antropólogo. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2005.
Esse texto é uma modificação do trabalho publicado
por Feitosa (2011): FEITOSA, Raphael Alves. Antropologia da Educação. p. 24-32.
In: PEREIRA, Maria de Lourdes (Org.). Ciências Naturais. V. 8. João
Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2011. ISBN 978-85-7745-931-5. Apostila do
curso de licenciatura em Ciências Naturais, modalidade à distância, UFPB
Virtual (http://portal.virtual.ufpb.br/wordpress/).